sexta-feira, 11 de abril de 2008

Chega De Saudade


É com grande fervor e convicção que minha avó, assim como a maioria das avós, exclama: “Quando eu era jovem isso não acontecia!”, ou, “Na minha época isso era inadmissível!”, e ainda, de forma verdadeiramente acaciana, “Os tempos mudaram, pois nada mais é como antes...”. Frases que denigrem a imagem da atualidade sempre são proferidas ferinamente pela boca de idosos. Entretanto, é cada vez mais frequente ouvir tais ultrajes sendo ditos por pais, tios e até alguns irmãos primogênitos. Pessoas nem tão velhas, mas que, num espírito nostálgico, não se contentando em relembrar os velhos tempos, insultam de todas as formas a nossa geração e essa década que nós, jovens, estamos construindo.
Contudo, uma onda que já existia há alguns anos tomou impulso e começa a destacar-se de forma estrondosa. Consiste em uma vertente saudosa que, num ato impetuoso, já não se preocupa apenas em maldizer a contemporaneidade, mas sim em agir, numa frente de busca incessante por transformar o hoje em ontem.
Tornou-se habitual a aparição nas livrarias de exemplares em honra ao passado. Primeiro vieram os tão aclamados “Almanaque Anos 70” e “Almanaque Anos 80”. Mas a indústria seguiu explorando o filão: já estão nas prateleiras almanaques dedicados ao Fusca, à Jovem Guarda, aos anos 50 e, para assombro de alguns, aos recentíssimos anos 90 também. Livros semelhantes surgem repentinamente, em questão de dias. Existe até almanaque em homenagem aos produtos que já não se vendem mais, como a intragável Emulsão de Scott, odiada pelas crianças de outrora. A nostalgia tornou-se uma indústria e não se limita aos livros. Várias bandas têm ressurgido das cinzas para lucrar com os saudosos. Há festa e shows promovendo o revival dos anos 80, 70, 60 e, é claro que, para ir a um desses eventos, o nostálgico consumidor precisa vestir-se como manda o figurino, desenterrando hediondas ombreiras, calças bocas de sino ou, ainda, polícromas sandálias plataforma. Tudo com os floreios e a extravagância de cada época.
O saudosismo parece ser um sentimento proeminente nesses tempos velozes em que o mundo foi da Guerra Fria à globalização e em que a tecnologia evoluiu da máquina de escrever ao notebook, ou melhor, ao palmtop. Com um processo evolutivo tão rápido, quem tem mais de 30 anos pode ser acometido pela sensação de que sua infância ocorreu em alguma civilização ancestral, entre sumérios ou hititas. É daí que nascem os cultores do retrô, a turma que decora a casa com telefones antigos e usa seus computadores de último tipo para jogar Spacer InvadersTétris ou Pacman. Ao lado do pessoal retrô que, ironicamente, se considera muito moderno, há o nostálgico mais tradicional. Em sua idealização do passado, esse utópico esquece que a catástrofe contemporânea não é muito maior que a tragédia de 20 anos atrás.
Só para se ter uma ideia de como era a calamidade desse passado tão revivido por alguns, deve-se mencionar que, foram nos anos 60 quando se instaurou a ditadura militar brasileira e a Revolução Cultural chinesa. Foram tempos hostis, onde se passaram a Guerra do Vietnã e a construção do Muro de Berlim, símbolos do autoritarismo comunista. Essa foi também a década dos hippies e sua pisada ideologia de “Paz e amor!”. Precisa dizer mais?...
Nos anos 70, para se conseguir um telefone (fixo, é claro) o brasileiro aguardava anos até a disponibilidade de uma linha. A Revolução Islâmica foi o marco da ascensão fundamentalista na arena 
internacional, fato que ainda dá dor de cabeça a muitos povos, principalmente, aos norte-americanos. Das calças pantalonas aos ternos com lapela hipertrofiada e gravatas largas, a moda da década foi a mais estrambóticamulticolorida e feia de toda a história.
aids fez história nos anos 80, quando foi descoberta. Nessa época o dinheiro brasileiro não valia nada e a moeda nacional já havia mudado diversas vezes. Xuxa engrenou sua carreira de ídolo infantil, abrindo as portas para várias outras apresentadoras loiras com trilha sonora esganiçada e que macaqueiam voz de nenê. Felizmente, fora a própria Xuxa, que ainda está no ar com seu programa infanto-irritante, nenhuma das outras apresentadoras continua nessa carreira. Com suas ombreiras, tecidos colantes e polainas, a moda dessa década teria sido a pior da história, se antes não tivesse havido os anos 70.
A memória é que 
edulcora os fatos, a ponto de o sujeito achar que até o ar era mais puro no tempo em que seus pais empesteavam a casa com inseticida Flit, outro dos produtos do qual muitos também devem sentir saudade... Esse passadismo militante tem raízes profundas no sentimentalismo lusitano. Hoje, como na há mais um Camões para cantar o império que se foi em versos heróicos ou um Casimiro de Abreu para chorar a infância perdida, cabe a alguns escritores oportunistas manterem a tocha da saudade acesa, através de suas obras maçantes.
Os almanaques com suas abrangentes 
coleções e sem critério de bobagens das décadas passadas são produtos feitos sob medida para a turma retrô. Todavia, a nostalgia não serve ao entendimento histórico. É, afinal, um sentimento conservador, incapaz de lançar uma luz original sobre o passado. Dizem que “a dignidade da moda está em seu caráter efêmero. Tal ditado serve perfeitamente para caracterizar a presente onda nostálgica. Ao recuperarmos baboseiras pop como as minigarrafas de Coca-Cola, bonecas das eternas Moranguinho e Hello Kitty, sem falar das liliputianas fofoletes, dos personagens da Vila Sésamo e do imortalizado Fofão, além de almanaques e outros produtos do gênero, que fazem mais sucesso entre adultos do que entre crianças, roubamos a dignidade da moda passada e a inteligência da época atual.
O melhor e mais prudente seria que deixassem-nos viver nossa década à nossa moda, ou daqui a 10 anos, quando um escritor oportunista lançar o
“Almanaque 00”, talvez só reste concluir que a presente década foi perdida em revivals.


Pedro Henrique Santiago Lima
Descoberto, 15 de março de 2007.

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